sábado, 4 de fevereiro de 2012

Património raiano: Convento (mosteiro) de Santa Maria de Aguiar

 No concelho de Figueira de Castelo Rodrigo encontramos um rico património histórico e arquitectónico ao qual não foi alheia a constituição da fronteira. Um exemplo disso é o mal chamado Convento de Santa Maria de Aguiar, que na realidade era um mosteiro e que fica situado na freguesia de Castelo Rodrigo, a apenas 11 km. da fronteira com a província de Salamanca, em plena Beira Interior, entre a capital do concelho e a aldeia de Almofala, de clara ressonância árabe.

O mosteiro, do qual restam a igreja e algumas das antigas dependências, tem, no entanto, muita história envolvida. Já no Parochiale Suevum de 569 é mencionada a diocese de Caliábria, que tradicionalmente tem-se associado a este mosteiro ou algum ponto dos arredores e que sofreria um colapso aquando da invasão muçulmana da Península Ibérica, presença que foi bem sentida na região a julgar pelo arco de tipo árabe situado na Cisterna da aldeia de Castelo Rodrigo, freguesia à que pertence o mosteiro. Após a «reconquista» asturiana do Condado Portucalense e todas as terras até ao Baixo Mondego, a condessa Dª. Châmoa Rodrigues (ou Flâmula), sobrinha de Mumadona Dias, condessa do Condado Portucalense e bisneta de Vímara Peres, teve no seu poder uma série de castelos na linha da Beira Alta como Longroiva, Mêda, Marialva ou Trancoso, lá para o século X, como pontos avançados de uma fronteira que visava controlar o território e evitar uma invasão vinda do planalto que se estende pelas actuais terras de Salamanca e Riba Côa, roto apenas por serras como a Serra da Marofa e pelo curso dos rios, cada vez mais encaixados nas rochas graníticas, formando arribas mais profundas segundo avançamos até ao Douro. Obviamente, Santa Maria de Aguiar não fazia parte do reino asturiano primeiro e do reino de Leão depois.

A data da fundação do mosteiro não resulta fácil de desvendar. Para Alexandre Herculano, Pai da historiografia medieval portuguesa, ter-se-ia instalado uma comunidade de monges beneditinos em meados do século XII, quando o território de Riba Côa já estaria na posse do reino de Leão. Para o historiador Rui Pinto de Azevedo, influenciado talvez pela retórica nacionalista da época, o mosteiro teria sido de fundação portuguesa e não leonesa, mais concretamente pelo rei D. Afonso Henriques, segundo o seu artigo de 1962. Seria na década de 1170 quando o convento abraçaria a ordem cisterciense dando lugar à construção do mosteiro que vemos hoje e que tanta atenção prestava à água como elemento básico da vida em comunidade aproveitando a proximidade da ribeira de Aguiar e as canalizações construídas para o efeito. Os edifícios que restam hoje em dia restam a igreja que pretendia ser ainda maior mas que afinal foi mais modesta, talvez por falta de verbas, e a Sala do Capítulo, construídas durante os séculos XIII e XIV. Em tempos posteriores houve aditamentos, nomeadamente nos séculos XVI a XVIII para adaptar o convento às necessidades do momento. As invasões francesas aquando da Guerra Peninsular e a extinção dos conventos em 1834 deram como resultado um estado de abandono que só viria concluir na quarta década do século passado quando começaram os primeiros restauros efectuados com cargo ao Estado e que tiveram continuidade até hoje, com as campanhas do IPPAR.

O mosteiro não recuperou, no entanto, o seu antigo status de sede de diocese que passou à nova fundação, em 1161, de Ciudad Rodrigo, data em que foi restaurada. A nova mitra mirobrigense, no entanto, teria como território natural as terras do Oeste da actual província de Salamanca e as terras de Riba Côa. Importa referir ainda que a existência do mosteiro parece estar relacionada com a formação da Ordem de S. Julião do Pereiro, que alguns referem como instituída pelo conde D. Henrique, sendo mais provável a sua fundação em meados do século XII. Esta ordem militar de origem leonesa teria a sua expressão a partir de 1218 na Ordem de Alcântara, pelo facto desta localidade conquistada aos almóadas ter sido encomendada a esta ordem, sendo que desde essa data a ordem passa a ter a sua sede central lá, o que fará com que o nome original caia no esquecimento e S. Julião do Pereiro passe a constituir apenas uma comenda desta ordem militar.

O mosteiro teve na sua posse importantes propriedades em toda a região, principalmente nos concelhos de Figueira de Castelo Rodrigo e Almeida e até na vizinha província de Salamanca, designadamente a aldeia da Bouça (La Bouza), que lhe pertenceu até à sua dissolução em 1834. Pode dizer-se que foi o poder feudal de tipo religioso mais importante nas terras de Riba Côa. O reino de Leão dominou estas terras até 1295, quando o rei D. Dinis, aproveitando as lutas internas na coroa castelhana (Leão e Castela uniram-se em 1230, mas cada reino manteve no início as suas particularidades), ocupou esta região e conseguiu que fosse reconhecida para Portugal no Tratado de Alcanices de 1297. Isso não significou a sua decadência; antes pelo contrário: quando muitos mosteiros começam a entrar em declínio a causa do fim das doações piedosas da monarquia e da nobreza, Santa Maria de Aguiar consegue manter o seu domínio, se bem a sua posição raiana vai fazer que uma certa decadência comece a materializar-se já em meados do século XV, devido às contínuas guerras entre Portugal e Castela, que o convertiam em ponto sensível na fronteira. Do ponto de vista eclesiástico, o convento manteve-se na diocese de Ciudad Rodrigo até à reforma de 1403, que redefiniu os limites diocesanos evitando a presença de dioceses estrangeiras em território português. Daí que transitasse para a diocese de Lamego.

A visita do mosteiro é altamente recomendada pelo seu valor artístico e arquitectónico, para além da beleza da paisagem envolvente. Até porque lá mesmo temos um lugar óptimo para ficar, se quisermos optar por um lugar sossegado e longe da civilização, de retiro quase espiritual (expressão que vem mesmo a calhar) na Hospedaria. O mosteiro pode ser um ponto de partida para visitar a região com o seu património arquitectónico e cultural como o castelo de Almofala, a própria aldeia de Castelo Rodrigo, que faz parte das chamadas «Aldeias Históricas de Portugal», antiga sede do concelho até ao século XIX, Figueira de Castelo Rodrigo, a Serra de Marofa, da qual podemos contemplar umas vistas até aonde alcança a vista para as terras de Riba Côa e a peneplanície de Salamanca e a Cordilheira Central (Penha da França e Serras de Gata e Malcata) ou o Castelo de Castelo Melhor, aldeia onde também podemos visitar o Museu e as Gravuras Rupestres do Vale do Côa, Património Mundial. Um bocadinho mais longe poderemos visitar Barca d'Alva, com belas vistas do Alto da Sapinha, lugar em que é possível ver as amendoeiras em flor, precisamente no início do mês de Fevereiro e o ponto em que o rio Águeda desagua no Douro e este passa a ser inteiramente um rio português. Se ainda tivermos vontade, é possível dar um pulinho até Freixo-de-Espada-à-Cinta e ver o Penedo Durão, de belas vistas, neste troço do Parque Nacional do Douro Internacional; ou para sul, ver a vila abaluartada de Almeida ou Ciudad Rodrigo, que com Almeida e S. Felix dos Galegos faz parte das Rotas dos Castelos da Raia. Definitivamente, um roteiro altamente apetitoso que dá para um bom fim-de-semana aliciante em que perder-se nestes belos recantos no nosso país ou do vizinho.

 Foto 1. Mosteiro de Santa Maria de Aguiar visto de Castelo Rodrigo.
 Foto 2. Vista geral da igreja do mosteiro.
 Fotos 3. Interior do claustro do mosteiro.
 Foto 4. Entrada lateral Sul.
 Foto 5. Lateral nascente da igreja (cabeceira da igreja).
 Foto 6. Mísulas românicas da igreja com motivos diversos.
Foto 7. Outra vista da igreja.
Foto 8. Dependências do mosteiro (nascente).
Foto 9. Dependências do mosteiro (poente), actual hospedaria.
Foto 10. Castelo Rodrigo visto do mosteiro.

Mapa 1. Mapa de situação.

P.S.: Aproveito a ocasião para dizer que mudei a fotografia do fundo. Neste caso, trata-se de uma vista a partir do miradouro do Alto da Sapinha, mencionado no texto, na confluência do rio Águeda com o Douro em Barca d'Alva, aldeia que actualmente tem cais ou embarcadouro de cruzeiros pelo rio Douro e onde podemos apreciar a famosa ponte internacional da antiga ferrovia (já ferrugenta) e a decadência de uma gare que foi muito movimentada até ao encerramento da linha em 1988, após a linha espanhola até Salamanca ter feito o mesmo em 1985.

8 comentários:

  1. Excelente artigo sobre mais um tesouro arquitectónico português desconhecido da maioria da sua população, eu incluído! Foi preciso um alentejano de Elvas para me fornecer mais uma razão para querer conhecer o concelho de Figueira de Castelo Rodrigo! Muito Obrigado! :-)

    ResponderEliminar
  2. É um prazer para mim. Eu cá aproveitava o fim-de-semana do dia 11 e 12 de Fevereiro porque poderás apreciar as amendoeiras em flor perto de Barca d'Alva. Aliás, agora com o IP2 é muito fácil chegar lá. De Bragança fica a apenas 130 km porque é só ir até V.N. de Foz Côa e depois daí por Castelo Melhor e Almendra, com belas vistas para o Côa. É ideal para uma excursão de um dia e se quiseres comer bem e ficar quentinho, recomendo o restaurante «A Cerca», em Figueira de Castelo Rodrigo. Tem um menu diário por 8 EUR com entrada+sopa+prato de carne ou de peixe+sobremesa caseira+café+bebida e aos sábados é a 10 EUR. Não sei o domingo se mantêm esse preço, mas muito mais caro não acho que seja. Se fores lá, já dizes alguma coisa. ;-)

    ResponderEliminar
  3. Muito Obrigado por todas as suas informações! Não prometo que possa ir este ano às Amendoeiras em Flor a Figueira de Castelo Rodrigo, mas haverá certamente uma próxima oportunidade. Já agora, e porque parece que conhece tão bem essa região (e não só!), sabe dizer-me qual é o estado da estrada entre Foz Côa e Figueira de Castelo Rodrigo? Grande abraço! :-)

    ResponderEliminar
  4. A estrada entre V.N. de Foz Côa e Figueira de Castelo Rodrigo é uma estrada de 35 km. O pavimento está bem pois foi essencial para atrair o turismo que vem visitar as gravuras rupestres do vale do Côa, mas obviamente tem curvas, nomeadamente entre V.N. de Foz Côa e Castelo Melhor. Isto porque a estrada desce da vila citada até à foz do rio,quando desagua no rio Douro, sendo que depois acompanha este rio brevemente para iniciar de novo uma subida entre escarpes e arribas que, se bem não são muito pronunciados, fazem com que a estrada apresente muitas curvas. De Castelo Melhor até Almendra as curvas diminuem porque há uma pequena descida até atingirmos o planalto. Daí até a sede de concelho, a estrada apresenta muitas mais rectas com alguma curva a contornar a Serra da Marofa.

    A última vez que lá passei foi neste Verão. Em V.N. de Foz Côa havia 32ºC, temperatura razoável, mas quando desci para ver a ponte do Côa que fica perto da foz e ver o ponto em que desagua no Douro, a temperatura era já de 39-40ºC. Era um calor húmido e sufocante!

    ResponderEliminar
  5. Muito Obrigado por todas estas informações. Serão certamente muito úteis porque em breve deverei ter de ir a Figueira de Castelo Rodrigo a negócios, e não tinha a certeza sobre qual seria o melhor trajecto de Bragança até lá! :-)

    ResponderEliminar
  6. Tem boa viagem então quando fores lá. Depois contas alguma coisa. ;-)

    ResponderEliminar
  7. Um artigo com qualidade,mas depois de consultar o ciberduvidas fico com a duvida se é mosteiro ou convento.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Na verdade são duas palavras sinónimas, que podem ser usadas indistintamente. A única diferença é o hábito: em alguns casos o costume é chamá-lo de convento e noutros de mosteiro, mas a ideia é a mesma.

      Eliminar